Permutáveis 

Uma lona tensionada nos quatro cantos do espaço filtra a luz da sala, assim como as telhas acima dela. Um desenho diretamente sobre as paredes dinamiza as relações com o espaço, pela sequência de fios de palha sobre as paredes. Dois guarda-chuvas de veludo - usados por vendedores ambulantes como display para brincos ou outras mercadorias - replicam esse desenho. Em uma caixa de madeira usada para o transporte de frutas foi encaixada uma cabaça, enquanto em outras, os desenhos impressos na embalagem são, na verdade, pinturas que mimetizam o resultado da impressão industrial. 

Há algo como um mise en abyme1 na exposição “Litro por Kilo”, resultado da parceria entre Mano Penalva (Salvador, 1987) e Rodrigue Mouchez (Le Chesnay, 1987). Longe de alguma profundidade psicológica ou de uma narrativa que se desdobra infinitamente, por trás da mercadoria encontramos outra mercadoria, dentro do invólucro, encontramos outro invólucro, com funções, materialidades e valores análogos uns aos outros. Por exemplo, na loja de telhas, provavelmente vamos encontrar lonas, nos mercados populares em que compramos caixas de frutas, provavelmente há cabaças, assim por diante. Litro por Kilo, nesse sentido, é um título eloquente para pensarmos a permutabilidade de funções e valores que os objetos adquirem no mercado em geral - além da sugestão de troca das mesmas quantidades entre líquidos e sólidos, o título ecoa as ofertas e chamadas de ambulantes como “três por dez, dois por cinco” em uma equivalência incerta. 

O modo de expor esses trabalhos também replica sua disposição nos mercados. A exposição parece uma situação propícia para que essas soluções temporárias ganhem interesse por si só, alinhando a história e os usos sociais dos materiais, objetos, formas e displays de mercados populares e vendedores informais a algum rigor formal, no qual as relações entre cores, texturas, e espacialidades tentam dar alguma ordem e autonomia para esses materiais. Podemos dizer que nas práticas de Penalva e Mouchez há uma permutação entre a atividade dos comerciantes informais e a do artista, em que negociações, sociabilidade e comunicação são partes centrais do trabalho, com suas devidas diferenças e riscos de fetichização no circuito artístico desse tipo de ação. Se os valores podem ser negociados e as mercadorias e atividades trocadas de acordo com suas contingências, o que determina a mínima estabilidade do processo? Como se definem os valores? 

Parte das caixas usadas por Mouchez são apropriadas, parte são pintadas com guache e baseadas em imagens diversas, o que confere um aspecto ao mesmo tempo industrial e uma vibração própria dos procedimentos pictóricos às peças. Penalva usa materiais como lonas, plásticos e canos de PVC em composições que evocam diversos momentos da história da arte moderna, como os movimentos concretos. Quais as consequências em se replicar no contexto da arte os mesmos displays , materiais e objetos que encontramos no mercado? É possível extrair desse contexto alguma ambiguidade ou autocompreensão que deixe escapar pulsões, desejos ou contradições não completamente esquadrinhados? 

Os dois artistas também atuam na criação de espaços para experimentação, discussão e divulgação de arte - Mouchez criou o AGUAS em 2017 e Penalva é o fundador do Massapê projetos. Ambos ampliam suas possibilidades de atuações no circuito de arte e incentivam a difusão de projetos de seus interlocutores. Em alguma medida, essa prática deve reinformar seus trabalhos. A produção de ambos começa nos mercados e nas ruas e o ateliê não é mais o lugar privilegiado da formalização. De todo modo, a passagem entre o mercado e a exposição, entre a contingência dos objetos no mundo e a possibilidade de determos nossa atenção sobre suas características em um espaço e tempo isolados, podem ser o início de uma relação menos automática e mais ambígua com os dois campos. 

Leandro Muniz, 2019